segunda-feira, 11 de maio de 2009

A Xuxa - histórias de cachorros

por Ivy Farias

Quando nós somos crianças, qualquer horário depois que o céu fica escuro já é tarde da noite. Não me lembro se naquele verão de 1990 as noites eram tão longas naquele novo endereço da minha família em Osasco. Mas me lembro, que durante duas noites seguidas, apareceu uma cachorra em nosso terreno. Na época, meus tios esforçavam se para terminar de construir a edícula. Não tinhamos nem interruptor de luz, quem dirá um muro. Foi assim que aquela cachorra apareceu ali, sem pedir licença, entrando em nosso quintal. Notamos que ela estava com as mamas caindo, assim, como se estivessem cheias de leite. E, estava tão desesperada de fome, que tentava até comer pedra. Ali, naquela nova casa, na nova história que estávamos construindo, achamos por bem ter uma nova cachorra para fazer parte da família. Assim a cadela entrou em nossas vidas e demos a ela o nome de Xuxa, de tão, mas tão preta que ela era (sim, era uma irônia, da mesma linha que quem chama um negão Zulu de “alemão”).

Fomos atrás dela e vimos que ela tinha quatro filhotinhos. Pegamos todos, levamos para casa, demos leite e depois fizemos um fubá bem reforçado. Com alguns tijolos levantamos três “paredes” e cobrimos com uma telha eternit. Aquele “puxadinho” virou o novo lar de Xuxa e seus filhotes (confesso que não lembro o fim que eles tiveram).

Nós notávamos que Xuxa não era uma cadela comum: ela sempre saia para fazer suas necessidades no mesmo horário e num lugar bem longe dali. Achavámos que ela era uma cachorra educada, que tinha se perdido de sua família. O que foi fundamental para ela ficar conosco dia após dia é que ela era muito brava: os tempos eram outros e nosso bairro era muito perigoso. Xuxa era nossa proteção naquela casa sem muros, sem portões, sem nada.

O mais engraçado é que tínhamos duas crianças em casa. Quer dizer, três, eu era uma delas, mas já não era mais considerada como tal porque os caçulas tinham acabado de fazer um ano. Um deles, o Igor, era o menino mais atentado da vizinhança. Com pouco mais de um ano de vida ele corria, gritava e aterrorizava todos nós tentando beber a água do vaso e comer cocô, não perguntem por quê. E claro que ele aterrorizava a Xuxa: montava nela como se fosse um cavalo, batia no rosto dela enquanto a cachorra comia (quem tem cachorro sabe que isso não se faz. Nunca) e, quando ela teve novos filhotinhos, ele dava “banhos” afogando os pobres coitados em um balde. Uma vez o menino jogou um tijolo em um deles e o filhotinho ficou com o rabo pela metade. E a Xuxa ali, sem fazer nada, na maior paciência com aquele peste.

Acho que em 1993 ou 1992, não me lembro ao certo, Xuxa desapareceu. Como de costume, ela foi fazer suas necessidades e nunca mais voltou. Ela ficou um tempão longe, disso eu me recordo. E nós, família chucra e de pouco sentimento, não demos muita falta. Sumiu-se a guardiã? Fazer o que a não ser enfrentar o perigo? E foi o que fizemos: dava seis horas ou melhor, quando anoitecia, fechávamos todas as janelas, não importava o calor que estava. Ouvíamos passos e pessoas andando no quintal – que continuava sem muros. Mas, felizmente, não nos roubaram muita coisa, só uns materias de construção que estavam no terreno.

Pensando bem… minto, já tínhamos portões sim. Lembro-me que fui eu que abri quando ouvi um latido insistente da rua de trás: era Xuxa, que voltava para casa gloriosa tanto tempo depois. Foi aí que um pedreiro de uma construção vizinha contou para outro, que foi contando até chegar nos nossos ouvidos que Xuxa, aquela nossa cachorra vira-lata e que não devia valer um tostão, estava presa este tempo todo numa casa abandonada. Sim, isso mesmo, sequestraram a nossa Xuxa! E não pediram resgate porque queriam pegá-lo na mão grande, como diz a malandragem, ao assaltar nossa casa. Pois bem, Xuxa foi mais esperta, escapou e fugiu de volta para casa.

Teve uma vez, porém, que Xuxa fugiu porque quis. Era 1997 e eu estudava muito para entrar na faculdade. Ela sumiu e, como de costume, não demos falta. Sabíamos que desta vez não tinha sido sequestro porque a vizinhança estava calma e ela já estava muito velha e doente. Um dia minha mãe voltava de um compromisso. Era um dia frio, destes que estas chuvas fininhas caem para deixar ainda mais frio quando ela encontrou a Xuxa, muito, mas muito longe de casa. A cachorra estava, acreditem, a uns cinco bairros de distância, algo como uns 40 minutos a pé. E ela estava com mais um bando de cães, até hoje não sei como minha mãe a reconheceu naquele breu (lembra que ela era bem preta?). Sei que, surpresa, ela a chamou e a cadela atendeu. As duas vieram andando para casa, para que Xuxa nunca mais errase o caminho.

E ela não errou mesmo. Não teve tempo. Ela estava doente e com um grande tumor nas maminhas que antes alimentaram tantos cachorrinhos. Era um tumor feio e aberto, mas não tínhamos coragem de sacrificar (não faltaram voluntários para tarefa tão ingrata). Um mês depois, se muito, Xuxa passou a chorar alto à noite. Na última fazia muito frio e ela ficou em sua casinha, que mais parecia uma mansão se comparada com a primeira. Fomos lá, mamãe e eu, demos um remédio de criança e fizemos carinho. Aquilo foi o mais próximo que conseguimos fazer de uma despedida. Xuxa se foi de madrugada e nunca mais a vimos: minha vó a enterrou antes que todos acordássemos.

Naquela época fiquei triste, mas não tanto. Hoje, enquanto escrevo esta história nem sei bem por quê, as lágrimas caem. Não é de remorso, porque na época não tínhamos conhecimento ou dinheiro ou amor para fazer qualquer coisa. E nem poderíamos, porque o fim dela era inevitável, já que estava bem velha (conosco foram sete anos). As lágrimas não sei do que são, de saudade ou de emoção de lembrar de um tempo que se foi e que infelizmente não fará falta.

O mais engraçado disso tudo, porém, é que uma pessoa da família sentiu muito a falta dela todas as três vezes que ela se foi, duas em que ela conseguiu voltar. Foi o Igor, o garotinho atentado, que, de um jeito ou de outro, foi o que de nós mais soube amá-la.

2 comentários:

Alice no País das Maravilhas disse...

Ahhh que dó!!!
Eu sei que todas as histórias são emocionantes. Se eu tivesse atendido essa Xuxa na época, provavelmente nem me lembrasse mais dela hoje. Mas quando a gente lê a história, fica realmente emocionado. Tmb chorei :)
Todos os cães que eu atendi têm histórias similares. Acho que preciso ouvir um pouco mais sobre as aventuras dos meu pacientes.
Parabéns pela crônica.

Alice no País das Maravilhas disse...

Ivy, não adianta muito pensar no que poderíamos ter feito, pelo seu relato a Xuxa teve muito carinho e atenção sim. O que importa agora são as lições que essa experiência passou, e o que podemos fazer pelo próximo.
Estou super a favor da adoção. Vamos adotar cães de rua.
bj e obrigada pela visita no blog